sábado, 26 de dezembro de 2009

A escola:um dos principais agentes da atuação das ideologias












Faz-se necessária, também, uma reflexão sobre a tão comentada crise no ensino da língua materna, a exemplo do que ocorreu em outros países, da qual se ouve falar desde os anos setenta no Brasil. Tal crise definida, ora como uso deficiente ou inadequado da língua materna, ora como ineficiência do ensino, coincide com o processo de democratização da escola. Esta escola, que sempre privilegiou a cultura e a linguagem das classes favorecidas, pretende-se democrática, mas não aceita o dialeto de alunos pertencentes às camadas populares, expressão de sua cultura. Sobre esse assunto comenta Gnerre (1985) que processos considerados democráticos, mesmo com o objetivo de aumentar oportunidades e recursos educacionais, podem estar a serviço de processos de padronização da língua, pois estes costumam ser utilizados como instrumentos de controle do estado sobre faixas de difícil controle, já que tais grupos que mantêm contato reduzido com a variedade padrão da língua e produzem pouco material escrito, muitas vezes têm dificuldade para entender o mapa de estratificação social e as conseqüentes posições sociais, ou seja quem é quem na sociedade. Assim, a educação formal tem este lado que visa formar cidadãos mais produtivos e funcionais, preparados para interagir na sociedade.
Para Baudrillard, (Apud Chang,1996, p.181), existe um terrorismo do código que, por funcionar como mecanismo que salvaguarda a univocalidade da mensagem, reprime a heterogeneidade e contradições que surgem nos processos reais de comunicação social. Assim, não partilhamos códigos, nem transmitimos unilateralmente a mensagem. Bakhtin, em seus estudos sobre a linguagem, chama a atenção para o fato de que existe um vínculo orgânico entre o uso da linguagem e a atividade humana, pois não falamos no vazio, os enunciados que produzimos estão sempre relacionados às esferas do agir humano, têm tema, organização composicional e estilos adequados às finalidades e condições de cada atividade realizada. Tal pensamento esclarece a complexidade existente nas práticas de linguagem, bem como das atividades humanas e, conseqüentemente, à permanente mutação nos gêneros do discurso.
De outra maneira, as pesquisas de Chartier (2001) questionam o significado da leitura nas sociedades tradicionais. A seu ver, há uma capacidade de decifração que muitos possuem que pode revelar um grande número de habilidades, sendo estas das mais virtuosas às mais hesitantes. É preciso, portanto, fazer a reconstituição das diferenças simplificadoras que persistem até hoje como a de duas populações opostas, isto é, a de leitores alfabetizados e analfabetos iletrados. O autor cita uma primeira diferença que seria a modalidade física do ato léxico, que caracteriza uma leitura silenciosa de outra que necessita da oralização em voz alta ou baixa.
Chartier trata diacronicamente o assunto, datando três épocas de conquista da leitura visual em silêncio. São elas os séculos IX-XI, quando os scriptoria monásticos abandonaram os hábitos da leitura e da cópia oralizada; o século XIII com a leitura silenciosa adotada nas universidades; e a partir da metade do século XVI quando a leitura silenciosa é adotada pelas aristocracias laicas. Foi desta forma que se deu uma nova relação com o livro, mais fácil e produtiva, que foi favorecida por mudanças no próprio manuscrito como, por exemplo, a separação das palavras, provocando relações analíticas entre o texto e suas glosas, notas e índices. Acontece, então, uma mudança no ato de ler, que antes consistia num esforço do corpo inteiro para outra arte de ler, na intimidade de uma relação individual.
Nesse sentido, é interessante assinalar a recente tradução do árabe para o português, da obra As mil e uma noites, feita pelo professor Mamede Mustafá Jarouche, que traz aos leitores brasileiros os mais famosos contos orientais universais, assim considerados, talvez, porque muitos os conhecem mesmo sem nunca os terem lido, além de suas múltiplas origens geográficas e culturais. Hugo Estenssoro (2005) ao comentar o lançamento da obra, destaca a infinitude do livro a partir, mesmo, de seu título e cita autores como De Quincey, que credita aos contos o entendimento que lhe foi dado de que “as mínimas coisas do universo devem ser espelhos das maiores” além de citar, também, Borges, autor que se refere ao livro como “uma espécie de eternidade”.
A informação acima veiculada pretende relacionar alguns dados históricos sobre a leitura e a escrita, pois, concordamos com Yunes (2005), ao dizer que, em nossa sociedade contemporânea, o fato da alfabetização ter se tornado uma imposição para o desenvolvimento industrial, entre outros, como foi visto no relato das pesquisas de Chartier e Hebrard (1995), disseminou a idéia de que a leitura decorre da escrita, embora se saiba, e os contos orientais são um exemplo disto, que a oralidade precede a escrita no tempo e memória dos homens.
Toda e qualquer forma de linguagem é criada pela cultura de um povo que define correspondências, formando um sistema definidor das representações deste mesmo povo sobre o mundo, portanto, a linguagem cria, dá significado ao mundo. Assim, tanto falantes quanto leitores somos obrigados a ver o mundo por meio das configurações das línguas e, de acordo com filósofos da linguagem como Wittgenstein (1996) e Austin (1986), o que entendemos como real significa o sentido que lhe atribuímos. Desta forma, aquilo que é dito depende de quem fala e da sua ideologia, bem como depende do ouvinte. No caso de um grupo social estar dominado por um só ponto de vista, contamina outros discursos e assim se perde a polifonia de vozes. A escrita tem um papel perverso neste processo, pois pode fixar significados, reforçando interpretações. Porém, na oralidade que antecede a escrita se insinua a criação de sentidos, pois o homem ao mesmo tempo que nomeia a natureza está interpretando-a, atribuindo significado, funções e designações, ou seja, está lendo.
Yunes (2002) considera que da mesma forma que a escrita não suprimiu a oralidade, continua preservada a condição de leitor que pratica o tipo de leitura acima descrito, uma camada secundária dentro da oralidade, intensamente presente na cultura alfabetizada, porém, atualmente condicionada ideologicamente pela mídia. Assim,


O mundo já aparece interpretado consoante as vozes que o manipulam, dos telejornais às telenovelas, dos comentários às entrevistas que alienam contextos para naturalizar práticas. (YUNES, 2002, p.54)


Da forma explicitada acima, idealmente, todos somos leitores, embora os marginalizados da alfabetização, muitas vezes não se considerem assim, pois não lhes é dada a condição de construção de um imaginário a partir da linguagem escrita no meio em que está inserido, isto é, sua capacidade de leitura é censurada.
Desta maneira, sabendo que só escreve quem lê, é importante acrescentar que, na pós-modernidade, precisamos ter clareza de que na leitura de mundo também está presente uma leitura oriunda da escrita. A cidadania em nossos tempos não é a mesma do século XIX, pois, neste último, havia a necessidade de formação de uma sociedade em harmonia com uma nação, hoje, porém, há a necessidade de sobrevivência humana à diversidade social. Para Yunes (2002), é importante a revisão da história da leitura no sentido de corolário da escrita.
Sabemos que o homem, desde os primórdios de sua existência, ao registrar, de várias formas, suas impressões ou interpretações, realizava uma escrita não-alfabética como produto de uma leitura precedente. Por outro lado, tal valorização da leitura poderia levar ao pensamento de que a codificação imobiliza a mensagem, já que preexistia à escrita. Tal fato, então, acarretaria a imobilidade da leitura, situação que de fato ocorreu durante muitos séculos, a favor das ideologias dominantes, juntamente com aqueles autorizados a ler, isto é, decodificando e interpretando signos definidos a priori.
Por muito tempo, o registro da participação do leitor ao longo da história não se importou com o exercício de interpretação por ele exercido, mas sim com gestos posturais, movimentação dos lábios, fonação etc. Tal aspecto era visto como um reconhecimento na escrita dos sentidos retidos nela inscritos pelo poder social. O sentido absoluto do que era registrado na escrita só se modificou com o surgimento de sociedades de caráter democrático, mais recentemente, quando houve a repercussão de valores e necessidades comuns entre classes sociais diferentes, fato que colocou em dúvida a valorização do escrito como verdade única.
Mais recentemente, apesar do grande valor da escrita em nossa sociedade, sabemos de estudos que destacam a mobilidade dos signos, regida por usuários que criam novas referências, transformam as formas e sua ordem, criam discursos neste espaço onde realmente acontece a leitura. Yunes (2002) usa as seguintes palavras de Michel de Certeau para exemplificar este fato:




Bem longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de antanho - mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casa –os leitores são vigilantes: eles circulam sobre a terra de outrem, caçam, furtivamente, como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se protege contra o desgaste do tempo ( nós nos esquecemos e nós a esqueceremos); ela pouco ou nada conserva de suas aquisições e cada lugar por onde ela passa é repetição do paraíso perdido. (CERTEAU, apud Yunes, 2002, p. 55)




Assim, para Yunes (2002, p. 56) “a escrita é um instantâneo no fluxo das leituras, ato contínuo que se interrompe para registro, por um lado; por outro o exercício de que fala de Certeau: desimobilizar o texto alheio, insuflando-lhe vida nova pela sua reinserção no circuito de significação”.
Desta forma, é possível dizer que a força do escrito vem do leitor, que a ela atribui um sentido em um contexto histórico determinado. A oralidade anterior à escrita, ou mesmo as sociedades ágrafas fundaram sua organização e cidadania na confiabilidade da palavra oral. Já em nossa era, a oralidade está contaminada pela escrita e as práticas de leitura são, na maioria das vezes, condicionadas pelas forças ideológicas dominantes, principalmente no ambiente escolar.
Atualmente, uma questão importante para os estudiosos da linguagem e da educação refere-se ao objetivo do ensino da língua materna: desenvolver um padrão lingüístico, norma padrão, ou reproduzir a ordem social vigente. De acordo com Silva (2002):




A escola brasileira, ainda que pseudodemocratizada, no que diz respeito à língua materna, persegue, no geral, a tradição normativo-prescritiva, (...). A conseqüência disso para quem tenha algum verniz de formação lingüística é óbvia: muitas e variadas normas chegam à escola e essa persegue ainda um ideal normativo tradicional. A grande maioria cala e tem que deixar a escola para lutar pela sobrevivência quotidiana e continuará subalterno, na sociedade que se reproduz de geração a geração, deixando o poder e a voz com aqueles que, por herança, já os adquiriram.( SILVA, 2002, p. 33)




De forma similar a Silva (2002), Magnani (2001) declara:




A escola, por sua vez, na medida em que trabalha primordialmente com a palavra, “signo ideológico por excelência”, institucionaliza códigos de leitura e escrita, os quais se baseiam em uma concepção de língua enquanto sistema de normas forjadas por uma classe, mas aprendidos e utilizados como se fossem naturais e espontâneos, e prepara um perfil de leitor que servirá de parâmetro para a produção de livros. (Magnani, 2001, p.8)


A escola, em função de tais aspectos, torna-se um dos principais agentes da atuação das ideologias, atuando por meio da legislação, programas de ensino, conteúdos, metodologias e avaliação na inculcação de um padrão para orientar o comportamento dos indivíduos. Como existem brechas nessas relações, surgem contra-ideologias que logo são combatidas pelo Estado na forma de reformas de ensino, reorganização curricular, projetos, entre outros.



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